Gritos do Ipiranga 🔵

 




Morei um tempo razoável no bairro do Ipiranga (imortalizado no hino nacional brasileiro). Apesar de ficar na capital, esse distrito é um refúgio paulistano. A diferença entre uma pacata vila de imigrantes e uma alucinante cidade grande era percebida a alguns quarteirões de caminhada. Felizmente, eu morava na região tranquila.


O modesto predinho dos anos 70 destoava das modernas torres, frutos da exploração imobiliária que “ergue e destrói coisas belas” e da gentrificação.


Mas como nada é perfeito, um grito (feminino) curto, seco e cheio de mistérios, como nos filmes de terror, rompeu o silêncio naquele amontoado de residências empilhadas. Os berros chegavam ao meu apartamento carregados dos mais terríveis impropérios que jamais tinha ouvido. Os gritos do Ipiranga não pareciam súplicas, pedidos de socorro, apenas tentativas de ofender em alto e bom som. Apesar de não respeitar limites territoriais, o grosso da discussão se concentrava numa espécie de corredor vertical ou fosso. Aquele túnel de vento amplificava o terrível som, que era entregue bem audível e sem filtros no meu lar. Os vizinhos também ouviram do Ipiranga os brados retumbantes. O conteúdo era muito pior que o mais eletrizante caso do Brasil Urgente (ou  o Alerta Agora). 


A discussão entre marido e mulher parecia na iminência de acabar em algo pior. Apesar dos aconselhamentos para meter a colher em discussão de marido e mulher, achei prudente não interromper os ânimos exaltados, suspeitando que eu apanhasse de ambos. Analisando o teor da, digamos, “conversa”, julguei que a discussão da relação se tratava de uma vontade do casal. 


Nos espaços comuns do edifício, portas dos apartamentos, escadas, corredores e portaria, os encontros eram cordiais — seguidos de um bom dia, um boa tarde, um boa noite, um “opa” ou meneio de cabeça. Definitivamente, nunca suspeitei estar diante de um(a) futuro(a) assassino(a). Assim, todos fingindo que nada demais acontecia, seguíamos.


Felizmente, não havia discussões por vaga de automóvel, nem participei de acaloradas reuniões de condomínio. Como já sentia uma cumplicidade tácita, suspeito que concordaria com as decisões de ambos.


Eu já estava prevendo encontrar um dos cônjuges arrastando uma pesada mala na porta da cena do crime, fechando o porta-malas de um carro revelando uma mão do cadáver ou carregando um caixão. As duas últimas cenas eu testemunharia da janela entreaberta, de madrugada.


O enredo da história estava muito interessante e eu já me preocupava que aquilo parecesse uma série da Netflix e eu fizesse questão de acompanhá-la. Para minha sanidade mental, felizmente, não foi isso o que aconteceu.


As acaloradas discussões cessaram e foram substituídas por reuniões familiares, conversas amigáveis, risos e um, aparente, clima de harmonia. Mas ainda espero o Datena ou o Bacci dando notícias do casal.


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