Doses cavalares 🔵

 




Eu havia saído há pouco tempo do hospital, então ainda caminhava com muita dificuldade. Era um evento direcionado a enólogos e enófilos, no Jockey Club de São Paulo. O negócio seria “chique”, então não teria espaço para vexame. Sair de casa apenas para beber vinho: o normal, para mim, era uma adega antiga e um copo americano sujo com vinho de garrafão em cima de um barril velho. Minha irmã, meu cunhado e eu partimos para a Cidade Jardim.


De início, o evento parecia algo criado para umas quatro classes sociais acima da minha. Mas, com a manifestação do teor alcoólico, descobri que o objetivo de quase todos era igual ao meu: encher a cara de graça. Bastava caminhar sem ansiedade, sacolejar o copo em círculos, enfiar o nariz, cheirar, fechar os olhos, imaginar-se na Europa, falar meia dúzia de palavras estranhas (terroir, tanino, cepa...) e fingir conhecer a procedência do líquido.


Assim, me disfarcei entre enólogos, sommeliers, enófilos e alcoólatras. Caminhando com dificuldade, por causa do problema de saúde, tive certa dificuldade em esconder os efeitos da bebida. Em corredores estreitos, entre garrafas e taças, aprendi na prática o significado da expressão “um elefante numa loja de cristais”.


Entre um estande e outro, fui praticando o ritual do vinho. Com uma expressão blasé, fiz cara do que eu julgava ser um conhecedor da bebida, fui bebendo vinhos de diversas origens: França, Espanha, Itália, Portugal, Argentina, Chile e Rio Grande do Sul e marcas que nem sequer sei pronunciar. Também falei tipos de uvas que já havia experimentado, sem saber diferenciá-los (Cabernet Sauvignon, Merlot), também dos quais nem conhecia (Chardonnay, Pinot Noir) e um nome que eu só havia visto em vidro de perfume (Malbec).


Depois de um bom tempo, vinho premiado e groselha vitaminada Milani são todos iguais. Eu estava ficando grogue, e aquela taça vazia pendurada aonde eu ia, me classificava como alcoólatra. Resolvi ir até a pista do Jockey Club para pegar ar fresco e ver umas corridas. Mas uma quantidade cavalar de vinhos, tinto (suave e seco), rosé e branco; uvas de países, regiões, terrenos, climas; e marcas diferentes caiu igual a uma bomba. A “mistureba” não reagiu muito bem.


Esse passeio bucólico, resultou numa ilusão óptica fantástica: no páreo, pareciam disputar a corrida um cavalo alado e outro metade homem metade equino. Forcei a vista, para enxergar melhor: eram só dois seres fabulosos da Mitologia Grega: Pegasus e Centauro. Já tinha visto o suficiente para aquele dia, era hora de ir.


Um dia inteiro andando  com uma tacinha, falando francês, decorando “neologismos”, fazendo cara de sommelier de periferia e misturando vinhos de marcas, cores, sabores, aromas e procedências diferentes à venda, me fizeram tomar uma decisão de compra: uma aspirina.









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