🔵 O ancião japonês

 


O imóvel era um completo mistério. Certamente, aquele amontoado de móveis só podia ser um comércio. Um comércio de móveis, era isso que eu precisava. No entanto, aquilo parecia um cômodo da casa de um acumulador compulsivo. A disposição de cadeiras, estantes, camas etc era impressionante.


Precisando de uma estante boa e barata, arrisquei entrar naquele lugar misterioso. Eu parecia ser o único cliente em anos, de modo que ninguém apareceu para me atender. Insisti, fazendo barulho para que eu fosse notado. Contudo, não obtive resposta. A quantidade de móveis amontoados dificultavam minha procura por algum atendente e, sinceramente, davam a impressão de que eu estava sozinho. Todo o cenário e a situação começavam a dar medo.


Com uma aproximação cautelosa, cheguei ao fundo da lojinha. Quando algo se moveu, tive um misto de susto e alívio. Um ancião japonês (com uns 80 anos) saiu do  que parecia um estado meditativo. Escondido entre os produtos de madeira, aquele senhor parecia fazer parte da decoração. 


Ele parecia surpreendido com a presença de um cliente. Embora aquilo fosse uma loja de móveis, não me senti um cliente, porque parecia que eu estava interrompendo algo. Dentro do seu tempo e velocidade, aquele senhor tentou me ajudar. Mas, vendo a dificuldade de resgatar algum objeto daquele emaranhado, fui agradecendo e saindo do ambiente claustrofóbico. O senhor nipônico pareceu esperar a minha atitude e, resignado, aquiesceu.


Quando entrei naquela lojinha, foi como se eu adentrasse um portal, passasse para um universo paralelo ou acessasse uma outra dimensão. O barulho de trânsito, sirenes e buzinas haviam cessado. O pequeno comércio de bairro escondia um panorama improvável e um silêncio absoluto. Isso explicava porque a meditação era mais exercitada que a transação comercial.


Saí de lá com a impressão de que eu era aguardado. Mais que isso, aquele velho oriental poderia esconder que foi um samurai do exército japonês ou se revelar um mestre carateca, ao dar uma surra numa gangue urbana. 


Isso foi há muito tempo, portanto ele deve ter falecido. Ou, o que mais me apavora, quando eu entrei naquela lojinha, o ancião japonês já estava morto.

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