Que Viagem! 🔵

 



Minha primeira sobrinha havia nascido. Esse acontecimento, somado a conhecer uma nova cidadezinha e a liberdade da pouca idade, era o chamado para cair na estrada. Com a decisão tomada, bastava arrumar a mochila. Assim eu fiz, fingindo estar com excesso de bagagem para evitar transportar tupperwares, plantas, pedidos da Avon ou alguma guloseima urgente que minha mãe sempre tinha escondida em algum lugar.


O ajuntamento de luzes, a desaceleração e o ônibus começando a sair da rodovia avisavam  que eu havia chegado. Desembarquei na rodoviária de madrugada. O ônibus partiu, revelando ali, sozinho, um moleque de 16 anos sem conhecer a cidade, praticamente perdido.


Avistei o pináculo da igreja e sua cruz. Se fosse a matriz, pronto, lá estaria o centro. Mas minha incipiente sabedoria fez eu intuir que podia ser o caminho da zona rural. Àquela hora da madrugada, lembrei das histórias de terror do interior: Lobisomem, Mula sem cabeça, Saci, Curupira, Boitatá e o Negrinho do Pastoreio - por ser o extremo sul de São Paulo, esse afrodescendente já devia estar atuando naquela região. Lembrei dos dois únicos “arranha-céus”, que minha irmã deu como referência. Acredito que eu fiquei como um retirante da seca chegando para tentar a vida na metrópole. Pronto, as lendas e mitos não representavam mais uma ameaça. Recoloquei meus medos no baú do Folclore e caminhei.


Segui em direção ao primeiro prédio, isso me obrigou a passar no centro. Era uma típica cidade do interior: a praça com a igreja, o coreto e os casarões. Caminhei por alguns quarteirões pelo meio das ruas, contando com companhias alvissareiras: a lua, as estrelas, o vento e um cão vadio. O silêncio e a tranquilidade da cidadezinha que dormia, me fizeram “viajar” no seu dia a dia: na manhã seguinte, todo o comércio estará aberto e estas ruas vão voltar à sua rotina; com certeza conheceria algumas pessoas; adotaria os costumes da cidade; e passaria a identificar viajantes e estranhos. A população apenas dorme, mas a luz de algum televisor, que escapava da janela, revelava que eu não estava só, talvez alguém estivesse  me observando por alguma janela entreaberta.


Entrei numa rua de terra que terminava num matagal, escura e igualmente silenciosa - na verdade, o que rompia a quietude eram os latidos ora distantes, ora ao lado. Os meus passos no chão de terra denunciavam a minha presença. Isso só aumentava as assombrações e o medo real do ataque de algum cão faminto. Novamente, voltaram a habitar o meu imaginário as medonhas figuras folclóricas (maldito Monteiro Lobato).


Achei uma humilde casa com o carro inconfundivelmente amarelo. A alegria de passar um dia vivendo a aventura para encontrar uma casa, numa cidade completamente desconhecida, sozinho e em uma região que eu não tinha visto nem sequer no Globo Repórter, me deu uma alegria incompatível com o horário e com o que estava por vir.


Com a pouca maturidade e a abundante irresponsabilidade da idade, eu resolvi “pregar uma peça”. Engrossei a voz e comecei a esmurrar a porta, gritando palavras ameaçadoras. Às três da madrugada! Eu continuei espancando a porta. Do outro lado, meu cunhado com uma faca de açougueiro. Minha irmã, apressadamente escondera minha sobrinha recém-nascida no guarda-roupa. De volta à razão, julguei o terreno desfavorável para mIm. A tragédia era iminente, quando resolvi me identificar. 


A recepção foi inversamente proporcional à minha alegria. Sem entender o porquê, mas diante de uma configuração triste, recebi um seco “boa noite”. Confesso que meu cunhado armado, minha irmã chorando e minha sobrinha no guarda-roupa não era a cena que eu esperava encontrar.


Nos dias, semanas, meses e anos seguintes, muitas alegrias, cervejas, churrascos e eu também fazia parte da rotina daquela cidade...




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