Comunidade distópica 🔵

 




Um fim de semana foi o suficiente para viver numa sociedade, pretensamente, ideal. O problema é que essa sociedade só sobrevive um feriadão, por isso é considerada uma utopia.


Aqueles dias foram um experimento de como seria uma microssociedade hippie. Estavam todos muito solícitos, cada um exercendo sua tarefa no coletivo. Lembro bem de uma salada de frutas sendo preparada voluntariamente por uma dezena de mãos e igualmente devorada. Tanto o preparo, quanto o modo (em comunidade) que foi devorada seriam obrigatoriamente abolidos em tempos de pandemia. Mas essa realidade ainda era papo de livros de História — Peste Negra e Gripe Espanhola —, de modo que parecíamos uma tribo de índios em completo isolamento da sociedade capitalista corroída pela competição.


A comunhão, a paz e o “bichogrilismo” estavam alcançando níveis incompreensíveis  e  inadmissíveis para o meu ceticismo, a ponto de alguém ameaçar iniciar a “dança ritual do fogo”, celebrar o Sol, a Lua, as matas, as águas, o ar, o raio, o trovão... Percebi que ali alguém surgiria se contorcendo, com os olhos virados e falando em línguas, ou o Arrebatamento começasse por lá.


Mas, como em toda convivência utópica, essa brincadeira de Novos Baianos já estava indo longe demais, logo vi. Eu tinha convicção de que aquela harmonia era forçada e logo o egoísmo viria à tona. Com meu individualismo, meu mau-humor, minha desconfiança e meu completo descrédito na Humanidade, sabia que aquele grupo possuía uma dissidência que não comungava com os ideais igualitários. Mais, tenho certeza que todo grupo, apesar do início pacífico e solidário, revela um tirano cruel, dominador e centralizador. Faltava localizar o bastardo. Talvez fosse o mais quieto, bonzinho, solícito ou o que desde o  começo mostrasse o lado mais obscuro da alma: o lado que, com muito esforço, conseguíamos esconder por alguns dias.


Demorei muitos anos, entretanto descobri que o provável estranho no ninho infiltrado era eu mesmo. Na época, talvez eu estivesse contaminado pelos ideais hippies, reflexos da imaturidade; hoje, quase um bolsonarista que sou, uma vez descoberto, seria ofendido de diversas maneiras: nazista, fascista, negacionista, terraplanista, taxista, capoeirista, skatista etc.


Uma coisa tenho certeza, se desmascarado, eu correria para a floresta mais próxima. Se alcançado, seria oferecido “aos deuses” como sacrifício e atirado à fogueira para purificar minha alma.


Mesmo cansado daquele disfarce, não deu tempo de exercer meu lado autoritário. Então, foi mais um final de semana entre violão, mantras e paz.

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