O espancamento 🔵

 




J..., o pobre condenado, já estava amarrado no poste. Não havia a menor chance de escapar daquele iminente martírio. A sessão de espancamento iria começar. Todos estavam armados com o que houvesse: paus, pedras, objetos contundentes, perfurantes, cortantes, perfurocortantes, explosivos e um galão de gasolina — que denunciava o triste e cruel final daquela justiça com as próprias mãos.


O desgraçado J... tinha cometido o crime há muito tempo. Curiosos intervieram — na verdade, tentaram —, mas foram rapidamente dissuadidos. Na sede por sangue e na lei da periferia não havia perdão nem prescrição de traição. Sem a menor chance da imolação pública ser adiada e todos já armados, quem discordava da violenta tradição deveria resignar-se e sair de perto.


Arremessaram uma pedra. Começou uma sequência de golpes com paus, pedras e demais instrumentos. De vez em quando lançavam morteiros na direção do infeliz. Alguns, corajosos e mais empolgados ou com muita sede de justiça invadiam a “linha de tiro” com socos, chutes e voadoras.


Pronto. O serviço sujo já estava feito. Mas ninguém arredou pé, pois ainda faltava o principal: a queima do que restou inerte. O próximo episódio era o que todos mais aguardavam. O êxtase, o golpe de misericórdia, o ato final, o que há de pior dentro de cada um, o que desperta os instintos mais primitivos: a vingança. Toda a gasolina foi despejada, foi derramada no que restou do que nem o poste sustentava mais. No chão jazia um boneco, não com vísceras expostas, mas alguns maços de capim e jornais que serviam de enchimento do Boneco de Judas.


A Malhação do Judas foi o evento mais sincrético que já presenciei. Além da molecada católica, judeus, budistas, espíritas, evangélicos, umbandistas, ateus e agnósticos esperavam o dia do espancamento.


O boneco era caprichosamente confeccionado com roupa velha e enchimento, devidamente trajado para a sessão de linchamento, para depois servir como objeto de imolação e, inconscientemente, descarrego de tudo que nos afligia. Tratando-se de crianças: algum vizinho que não devolvia a bola, alguma guloseima negada ou um brinquedo estragado.


Na Sexta-feira da Paixão resistíamos a carne vermelha; no Sábado de Aleluia barbarizávamos Judas, quase 2000 anos depois da traição, mantendo a tradição; e no Domingo de Páscoa, inocentemente, cristãos tementes a Deus, devorávamos ovos de chocolate.


A tradição portuguesa e espanhola, embora violenta, significava apenas mais uma brincadeira. Depois dessa prática inocente, algo também extremamente violento e cruel: futebol de rua.

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