🔵 Passarás vergonha

 



Fui à missa da igreja do bairro. Fui com a minha mãe e, sendo muito novo, me comportei bem porque ali, além de ser a casa de Deus, Ele poderia castigar-me. Eu estava sendo avaliado por minha mãe, Deus e o padre. Não adiantava olhar para os lados, os santos pareciam me encarar, às vezes com cara de acusação. Eu nunca me senti tão vigiado exposto aos olhos dessa turma. Se eu me submetesse ao escrutínio implacável desta turma, quem sabe, no Natal, isto poderia me render bons presentes.


Estava montado o cenário que corroborava com o temor que Deus castigava e os olhos d’Ele estavam em todos os lugares. Seria relativamente fácil ouvir a palavra de Deus. Contudo, a dificuldade, que mantinha a preocupação fora do meu alcance, era o forte sotaque do pároco. Como não entendia o que era dito, copiei os fiéis. Num mimetismo católico, e caótico, que poderia ser confundido com demonstração precoce de fé, sentei, levantei, fiz o sinal da cruz e murmurei algumas palavras rituais.


Na hora das ofertas, eu cometi o ato que até hoje deve ser lembrado. Pois bem, a sacolinha percorria as mãos do povo, mas aquele domingo não parecia ser o dia das grandes ofertas. Talvez, do outro lado, algum empresário garantisse um bom vinho. A canção, tocada num violão desafinado, mas que era honesto. O som me deixou num inédito estado meditativo. Isto deveria fazer parte do rito ou efeito do incenso.


Quando voltei a mim, notei que tudo havia cessado: o recolhimento da contribuição financeira, o burburinho e a canção. A igreja estava em silêncio, e o padre voltou a citar a Bíblia ou dar conselhos. De repente, minha mãe sacou uma inacreditável nota. Como não havia nenhuma loja nas proximidades, meu maior temor havia se materializado: sim, eu subiria no altar e depositaria a derradeira oferta.


Segurando o dinheiro como quem transportava um cartaz, fui liberado e segui o trajeto sob os olhares da minha mãe, de Deus, dos santos, dum padre (incrédulo com a cena) e de uma plateia silenciosa e atenta. Não interrompi só o padre, interrompi a missa, talvez uma visão celestial, uma santa vertendo lágrimas ou o Arrebatamento. Fui e voltei, cabisbaixo, com as perninhas céleres, como um coelho de gincana de quermesse ou um frango de granja.


Quem sabe a minha prova de fé sirva de exemplo, mostrando que para Deus nada é impossível, nem mesmo passar vergonha. Este singelo gesto pode ser lembrado mais que as festas católicas e, provavelmente, deve ter destravado as eternas obras da igreja e a troca do telhado.


Foi, literalmente, o maior mico da paróquia, afinal, os olhos de Deus estão em todos os lugares, mas naquela igreja estavam olhos, ouvidos e bocas de toda a vizinhança. Eu acredito que a frase mais repetida, naquele dia, foi: É o filho da Neuza!

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