🔵 Jornal pra embrulhar peixes e bananas



Não perdia tempo. Assim que anunciavam que havia uma pilha de jornais, eu corria resgatá-los. Eu vendia os impressos na feira, que usava-os para embrulhar bananas e peixes. Era um triste fim para textos de excelentes jornalistas, mas poderia ser bem pior. Os periódicos eram das semanas anteriores, portanto velhos para manter-me por dentro dos últimos assuntos, porém novos para embrulhar peixes e bananas.


Essa era uma maneira de juntar algum dinheiro e exigir uma esfirra, um copo de ‘Coca’ e troco de bala no recreio da escola.


Essa prática laboral era precocemente capitalista, embora voluntária. Atualmente seria considerada trabalho infantil, talvez abandono de incapaz, e eu estaria condenado a engolir a merenda escolar servida pela prefeitura de Guarulhos. Também ficaria entregue à completa ignorância, isso porque não me desfazia dos jornais sem que fossem folheados. Com esse ritual, não deixava escapar as principais reportagens, colunas, opiniões, suplementos de cultura, esportes e, lógico, as tirinhas. Comigo, os noticiosos exerciam a nobre função de formar alguém intelectualmente. Após minha pueril triagem, a Folha de São Paulo cumpriria uma função menos nobre.


Na feira-livre de domingo, não sei por qual motivo, eu conseguia realizar o meu comércio com certa vantagem. Talvez fosse romântica a imagem de um garotinho arrastando um carrinho cheio de jornais entre frutas, legumes e verduras.


Antigamente, a Folha de São Paulo era escrita por escritores melhores, não militantes políticos por isso era mais confiável; hoje, com tiragem muito menor, é eivada de “fontes” (“bucha de canhão”) pouco confiáveis: é um tal de “dizem especialistas” (escolhidos) e “diz leitor (quem?).


Manchetes confundem-se com “click bait” (caça clique) e matérias são escritas com a profundidade de um tuíte. “Ideias” já não são submetidas a uma reflexão mais embasada ou à lata do lixo.


Atualmente, jornalistas escrevem ameaças de morte: soma de militância política barata, falta de criatividade e sabe-se lá o que mais, talvez ausência de caráter. Nesse caso, os jornais já não sirvam nem para embrulhar bananas e peixes. A única utilidade é algo que nem sequer citarei.


“Eu não preciso ler jornais, mentir sozinho eu sou capaz”.

Raul Seixas cantou, alertou ou profetizou?


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