sábado, 24 de agosto de 2024

🔵 Saudosa maloca

 


Durante anos, inclusive durante a própria época, eu via que aquele território de brincadeiras era um microcosmo para análise de comportamentos humanos e organização social. Atualmente, numa análise mais aprofundada, eu vejo aquilo como uma “Faixa de Gaza” pacífica.


Como partidas entre Israel e Palestina, o nosso futebol de rua era literalmente de várzea; portanto, o córrego,  que para a molecada significava apenas uma dificuldade para recuperar a bola, para a família pobre era a falta de saneamento básico passando no fundo do quintal.


Geralmente, eu jogava bola (futebol) na vielinha (pequena rua) entre uma mansão e um barraco. O garoto da mansão e o garoto do barraco jogavam bola juntos. Embora fosse evidente a diferença social, entre a molecada, não havia qualquer tipo de segregação, financeira ou étnica.


Contudo, provavelmente, havia resquícios da escravidão encerrada há apenas um século. Na mansão, o “quartinho da empregada” era o que poderia ser chamado de “a nova senzala”. Não obstante, aquele cubículo era o refúgio a tanta frieza enfrentada pelo meu amigo rico. Negligenciado por um pai que sempre estava fora, e uma mãe eternamente ocupada, meu amigo encontrava a humanidade acolhedora convivendo com as empregadas. Anos 80!


***


Iludidos pela falsa evolução de ganhar um campo de futebol, limpamos o terreno da favela, que tinha apenas o barraco do meu amigo. O trabalho arqueológico revelou que aquele barraco promoveu animadas discussões regadas a samba, cerveja e garrafadas. 


Depois de algum tempo, a prospecção dos vestígios de desinteligência, bem como a exploração do trabalho infantil, desanimaram aquele ímpeto empreendedor — encorajado por um sábado ensolarado. Finalmente, os intermináveis cacos de vidro e algum sangue derramado encerraram a construção do nosso magnífico “estádio”.


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Muito tempo passou, a mansão permanecia, como um castelo, na esquina; o barraco não existia mais. Isso pode ser ruim, mas pode ser bom: aquela família pode ter ido morar numa casinha melhor.




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